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Entre a pesca e o porto
Antes do sol nascer, preparando o barco, até a noite em reuniões de conselhos, essa é a rotina diária do pescador
Especial
Reportagem original escrita por alunos do quarto ano de jornalismo da Unisanta, como parte do projeto da revista Viral
São 6 horas da manhã e o sol ainda não apareceu na Praia das Astúrias, mas o barco de Rony já está sendo colocado na água para mais um dia de pescaria. Ele e seus dois filhos tiram a embarcação – que veio engatada em um Gol da década de 1990 lá do bairro Santo Antônio – e a colocam no mar com facilidade.
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Se for um dia de sorte, eles podem encerrar a atividade com uns 80 quilos de pescado, que serão distribuídos nos mercados e restaurantes da Baixada Santista. O dia está favorável para isso, as águas mansas do estuário e o nascer do sol alaranjado de outono refletem o otimismo dos pescadores.
Mas essa confiança é interrompida com a reflexão sobre o processo de dragagem para a ampliação e manutenção na infraestrutura do porto de Santos, caracterizado pela remoção de uma parte do fundo do mar.
O processo tem se mostrado cada vez mais prejudicial para quem vive da pesca. “Peixes considerados migratórios, que vinham se reproduzir aqui, já não conseguem mais colocar seus ovos por conta do aumento da profundidade do estuário”, reclama o pescador.
Com isso, as dificuldades só aumentam. Embarcações pequenas e sem estrutura para ir tão longe da costa porque podem sobrecarregar os motores; diminuição de espécies marinhas que desviaram seu caminho para se reproduzirem em outro local; e resíduos de lama da dragagem sendo puxados junto com a rede, aumentando o peso, e, consequentemente, o esforço braçal dos pescadores.
“Eu tenho três barcos, mas só estou conseguindo ir pescar com um, porque os motores dos outros dois quebraram.”
De acordo com Rony, as embarcações necessitam de mais manutenções hoje em dia. “Eu tenho três barcos, mas só estou conseguindo ir pescar com um, porque os motores dos outros dois quebraram. Não é a primeira e nem a segunda vez que isso acontece, e não tem condições de mandar arrumar sempre, é muito caro”, explica.
A fim de tentar melhorias para os profissionais da área, Rony participa ativamente de conselhos regionais, cobrando os governos estadual e federal em reuniões e audiências públicas sobre o porto e sobre as Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Atualmente, é membro do Conselho da APA Marinha e do Parque Xixová-Japuí e representante da Colônia de Pescadores Z-04, de São Vicente.
A militância de Rony Peterson, veio a partir da consciência sobre a necessidade de preservação do meio ambiente depois de trabalhar durante muitos anos na estiva e acompanhar, bem de perto mesmo, o crescimento do complexo portuário de Santos, ao mesmo tempo em que a pesca ainda era apenas uma atividade que complementava sua renda.
Estiva
No final da década de 1980, apesar de o coração estar voltado para o mar, Rony tinha uma família para sustentar e foi então que ele começou a trabalhar como estivador eventual no porto santista.
Por meio de um sistema de distribuição de senhas (um método que consistia em um sorteio diário), trabalhadores como ele, sem vínculos fixos com as empresas, tinham chances de serem escolhidos para um dia de trabalho, mas sem certeza alguma. Essa disputa, além de cansativa, testava sorte, resiliência e determinação.
Como “bagrinho” – apelido dado aos estivadores não-sindicalizados – desempenhou várias funções que testaram suas habilidades, desde atuar na sacaria de café, algodão, até embarcar açúcar nos navios, ou cuidar dos contêineres.
Esses longos anos de rotina intensa levaram Rony a obter finalmente a carteira preta, um documento considerado uma grande conquista, pois simbolizava o status de um veterano confiável na estiva, concedendo-lhe prioridade na seleção de trabalhos e reconhecendo seu comprometimento.
Segundo ele, isso foi possível por indicação do tio, que já tinha carteira preta. Além do tio, outros familiares já haviam trabalhado no ramo, como os avós e o irmão dele, que atua até hoje como estivador.
“Nessa época, a estiva não era terceirizada como é hoje, então era um trabalho que valia a pena, pois pagava bem, entende? E quanto mais eu produzia, maiores eram as chances de embarcar nos navios. A cada dois dias, recebia um novo holerite, com dinheiro entrando na conta”, relata.
Foram cerca de 25 anos em uma rotina intensa de trabalho, até sair do porto, em 2014. “Eu queria levar todos eles para pescar, mas os outros três ficam enjoados, não aguentam”, comenta.
Concomitante ao trabalho no porto, ele encontrava tempo para sua verdadeira paixão: a pesca. Nascido em Santos, mas caiçara de Guarujá, Rony se encantou pelo mar desde muito novo. “Sempre que dava, ia com meu pai para lançar a rede em busca de espécies. A pesca era tanto um alívio do estresse do trabalho quanto uma fonte adicional de renda”, recorda.
Isso se tornou geracional, e hoje ele passa os conhecimentos para dois dos cinco filhos. Isso porque o mar não é para qualquer um, não só pelo esforço físico, como pelo balanço das águas: “Eu queria levar todos eles para pescar, mas os outros três ficam enjoados, não aguentam”, comenta.
A capacitação dos filhos aconteceu também por uma necessidade. O esforço físico começou a mostrar consequências com o passar do tempo e o pescador foi diagnosticado com uma hérnia inguinal, condição em que o tecido mole do intestino cria uma saliência por meio de um ponto fraco nos músculos abdominais, causando inchaço, desconforto e dor.
Ele realizou uma cirurgia em 2023 e já não pode mais carregar tanto peso.
Dragagem
Com toda sua bagagem, Peterson testemunhou, ao longo dos anos, as mudanças no porto santista, desde a modernização de processos até a expansão das instalações para lidar com o aumento do comércio marítimo.
Simultaneamente, observou, na atividade de pesca, as mudanças nos padrões climáticos e os desafios enfrentados pela dragagem.
Embora essas mudanças se mostrem positivas para a Baixada Santista, de maneira estrutural, política e econômica, infelizmente elas afastam os pescadores da costa, com legislações que só permitem que atividades sejam realizadas a quase 10 quilômetros do ponto mais externo da área territorial das cidades.
Isso porque, com o crescimento do porto, novas empresas começaram a se instalar, ocupando os espaços da pesca, o que modificou totalmente a dinâmica do trabalho .
A Empresa Brasileira de Terminais Portuários (Embraport) cresceu e a região da Ilha Barnabé se expandiu. “Nós, pescadores, tivemos que nos adaptar a novas tecnologias, como redes importadas e motores mais potentes, substituindo os remos e os motores menos eficientes. Antes eram motores de 15 HP, e hoje já são comuns motores de 60 a 90 HP”, conta Rony.
Segundo pesquisas, o processo de dragagem gera impactos negativos para o meio ambiente, diretamente afetando organismos e seus habitats, e indiretamente alterando a qualidade da água e a química global do estuário, com a movimentação de contaminantes e nutrientes durante a suspensão do sedimento.
Ao voltar à praia, por volta das 13 horas, o barco pesqueiro chega bem mais pesado do que saiu. Um equipamento de rodinha auxilia no reboque do barco até a areia, que é colocado atrás do Gol e levado de volta à garagem do Santo Antônio, mais conhecida como rancho.
Enquanto o filho de 18 anos lava as roupas de pesca e as pendura para secar, o outro de 16 começa a separar os peixes do isopor com gelo para outras bacias a fim de serem pesados.
Como de costume, em recompensa por mais uma manhã de sucesso na pescaria, Rony abre uma latinha de cerveja bem gelada. Desta vez, foram 74 quilos de pescada-amarela.
Dessa quantidade, sai uma parte rumo ao Mercado de Peixe, na Ponta da Praia, outra para o Khadun Pescados e a restante para o Big Fish, ambos na Vila Lygia, em Guarujá. Cada estabelecimento devolve uma nota fiscal do pedido para o entregador, que ele guarda em sua carteira.
“Eu sou organizado na minha bagunça, tenho todas as notas fiscais dos pedidos de mercados e restaurantes aos quais eu vendo os frutos do mar”, comenta.
Por fim, a pesca se torna mais do que uma atividade de lazer; torna-se uma segunda fonte de renda constante. Aprofundando os laços com a atividade, ele e outros pescadores reúnem-se frequentemente no rancho do bairro Santo Antônio. Lá, eles compartilham histórias, planejam as saídas para o mar e também desfrutam dos frutos do mar frescos que trazem do estuário.
Autores
Ana Clara C. Dias Antonio
repórter e editora
Ana Beatriz Ubrig Coelho
escritora e editora
Giuliana Gottzent Tiberi
diretora de fotografia
Leia a reportagem completa no site da Revista Viral: https://sites.google.com/view/revista-viral-porto-cidade/perfis/peterson-vieira-neves
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